30 de agosto de 2015

Cicatriz.

Nasci destinada a uma cicatriz. Um anjo torto veio e disse: Vai, Lidiany! ser manca na vida. Até minha mãe - mãe solteira, trinta e oito anos, um metro e cinquenta e quatro apenas, carregando no braço uma menina já grande que sentia dor ao andar, coração apertado, pouco dinheiro, sem formação tradicional, foi largada pelo cara com quem transou quando sua barriga ainda estava crescendo e sua não-planejada filha ainda não tinha nome, dois partos normais, quase que apoio nenhum - descobrir o que eu tinha, passamos, eu e ela, mas principalmente ela, mãe solteira e com dinheiro pouco, por muito desespero, filas, andanças a pé e horas nos transportes públicos, procura, incompreensão, negação de direitos, falta de conhecimento (dela e de quem nos 'atendia'), preocupação com o outro filho, também criança, deixado aos cuidados de outros, pagava para deixar com os outros, que mesmo parentes não eram tão próximos, fazer o quê? Era o que dava pra fazer. E ela falava sempre:
- Desculpa, filho, desculpa. Mas é o que dá pra mãe fazer.

Mais uma vez disseram "não, não tem o que fazer", e depois de tantas tentativas essa mãe tão forte chorou ali mesmo, sem querer chorar chorou porque não aguentava mais tanto desprezo, a cria dela precisava de ajuda, a cria dela sentia dor ao andar, tão pequena e já sentia tanta dor, "o que mais eu posso fazer?", ela se perguntava. Um moço bom viu essa mulher tão pequena, um metro e cinquenta e quatro apenas, chorando ao lado de uma menina também pequena; se aproximou e perguntou por que ela chorava, e ela contou do problema da menina que mancava e que sentia dor. Ele, com compaixão, resolveu ajudar aquela mãe e ajudou.

Depois de muita indagação me falaram que eu tinha nascido com um problema estrutural, que o problema era no fêmur e tinha o nome de "coxa vara", esse nome estranho, tão estranho quanto me falarem que nasci com problemas estruturais e que era por isso que eu mancava e sentia dor. Será que fui qualificada no mundo como criança que nasceu errada?

Fui então cumprir meu destino pouco tempo depois, em jejum e com minha mãe ao lado, sorrindo e dizendo pra mim, ainda menina, que tudo ia dar certo. Despedida. Entrei num lugar frio, cheio de médicos com roupas azuis e luvas de cor que não me lembro, que por sua vez estavam dentro de salas com vidros transparentes.

A mãe orando com o coração apertado lá fora, lugar feio e também frio.

Na maca me (re)colocaram e passaram um líquido alaranjado onde iam cortar a pele. No rosto me colocaram uma máscara. No peito fios que não tinham fim. Enfim respirei um cheiro que era doce e novo e rápido e (fim.)

Acordei com uma cicatriz vermelha, larga, dolorida.

Posterior a primeira, vieram a segunda, a terceira e a quarta cirurgias. O segundo corte sobre o primeiro, o terceiro corte sobre o segundo, o quarto corte sobre o terceiro. Camadas das quais eu não faço ideia de como são. Era sempre o mesmo lugar, mas a cada vez que eu olhava o fim era mais distante do início e eu pensava sempre onde é que ele iria parar. A quinta cirurgia aconteceu por negligência, a sexta por fraqueza e a sétima, por favor, que seja a última. Não foi. O ciclo só foi fechado com a oitava, já que a perna não continha sua vontade de crescer e ser finalmente mais livre, como eu.

A cicatriz que era vermelha passou a ser quase branca.

O que era dolorido hoje quase não dói. Mas essa mesma cicatriz nunca foi tão interessante: ela pode ser vista de tão longe!, ser feia para alguns, bonita para outros, um pouco indiferente para mim. Engraçado como parece mostrar uma estrada que teve seus desvios e buracos. Hoje ainda é acompanhada por alguns vasinhos, não os de flores, mas aqueles de sangue, que mostram quão prejudicial pode ter sido toda essa ausência de fluidez-movimento. Mas também me faz ter algo lindo, que sempre foi tão forte e tão presente: o corpo de minha mãe. Compartilhamos de coisas que só nós duas sabemos. Segredos escancarados por minhas vias corporais, por todos os meus sentidos, por meu andar manco, por minha pele clara e por todas as marcas que nela repousam.

(Dedico esta pequena autobiografia à minha mãe, que é mais uma das Marias-ninguém, mas também por ser minha e somente minha Maria.)

25 de julho de 2015

Ausência

Começa no feto o quase silêncio.
Silêncio pleno cheio de som
Órgãos, movimento
Transferência
Espaço-tempo.

Mergulho submerso de dois.
Até que... fora d'água.
Respir(ação).
(Inspiração).

Ouve, toca, vê.
Cheira, mãe. Cheira tua cria.
Tua cria te sente também.

Fluxo de tempo.
Cresce, cresce, cresce.
Se vê. Se perde.
Se perde.
Se perde.
Barulho.

Talvez se ache.
Silêncio, ruído.

Procria.
Continua tua raça,
Tua animalidade.

Aquela primeira te olha
Olha tua cria
Contínua ação.

Até que morre.
Silêncio absoluto.

Tumulto, chiado, barulho
Alvoroço, ruído, furdunço
Nada silencia na outra.
Tudo é dor.