5 de julho de 2010

-Vejo você amanhã?

Eu andava lentamente sobre aquela rua toda tortuosa, cheia de pedras. Por um instante olhei aquele sapatinho de veludo que amava tanto. Vermelho e branco, xadrez; me sentia uma bonequinha com aquele sapato. E ele me deixava pisar confortavelmente.
Estava em um daqueles dias em que tudo que se quer é sentir a brisa, olhar para todos os cantos, reparar nas pessoas e em suas expressões. Andar sem se preocupar com nada, exatamente nada. Talvez até arriscar algum caminho desconhecido, para me surpreender com novos lugares...

O dia já estava mudando de cor... às vezes ele se mostra colorido, roxo ou alaranjado. Mas já cansado. É bonito de se observar às seis horas. Parece que ele se torna aconchegante para aqueles que querem chegar logo em algum lugar que lhes dê conforto, onde possam tomar um bom chocolate quente antes de dormir.

Ao passar perto do metrô me deparei com aquela mesma mulher que estava exatamente no mesmo lugar há uma semana, vestida de verde e amarelo, com um chapéu estranho, e um carrinho de supermercado a sua frente cheio de bugigangas. Observava as luzes meio opacas a sua frente como nenhuma outra pessoa ao redor. Parecia buscar algo ao longe, algo que perdeu e que nunca mais teria de volta. Parecia buscar esperança, algum refúgio. Um refúgio que talvez ela nunca encontrasse. O que ela devia fazer com aquelas bugigangas em seu carrinho talvez eu também nunca descobrisse.

Continuei andando com minha sapatilha xadrez, pensando em como a vida podia ser engraçada e ao mesmo tempo misteriosa. E em como as pessoas são completamente diferentes uma das outras... de como os caminhos que fazemos em nossas vidas podem se cruzar, ou podem nunca se encontrar.

Finalmente cheguei. Enquanto minha aula de piano não começava, fiquei ensaiando uma cirandinha de Villa Lobos em teclas imaginárias que se solidificavam quando encostavam em meu livro. Meus dedos caminhavam lentamente por ele, se alternando. Mal cheguei a parte rápida de 'Vamos ver a mulatinha', quando ouvi uma voz doce perguntando:
- Posso sentar ao seu lado?
Parei instantaneamente.
-Claro! -respondi sem olhar.
- Então você toca piano? -Ele disse, com aquela mesma voz doce, só que agora com um pouco também de... alegria.
Eu o olhei. Ele tinha um rosto tão querido... um sorriso fascinante.
- É...toco sim. Quer dizer; estou tentando! - Disse me sentindo mais tímida do que o costume.
- Acho lindo esse dom. Cuide muito bem dele!
Aquilo tudo parecia tão fora da realidade... pois ele me conquistava a cada palavra.
-Ah, não é dom. Só estou me esforçando. E você, o que faz por aqui? -Perguntei, curiosa.
-Não sei muito bem...
Ele olhou para um infinito que ali não existia, pareceu tentar recordar, e... sorriu.
- Esse lugar me atraiu. Senti algo diferente nele. Eu adoro esse mundo que a arte cria... faz bem a nossa alma. Queria poder ficar sempre por aqui.

Ele transpareceu muita sinceridade. E era exatamente isso o que eu também sentia ali, independentemente do que via; pessoas dançando,  falas e movimentos exagerados de um personagem teatral... a música ao longe surgindo de uma flauta. Aquele lugar era realmente encantador. E tudo parecia mais acolhedor ao lado daquele rapaz e seu largo sorriso.

De repente a porta ao lado se abriu. Minha prefessora despediu-se de seu aluno com um beijo, olhou para mim e me convidou para entrar, carinhosamente. Olhou também curiosa para o menino ao meu lado.
-Vamos entrar, Clarissa?
-Sim, professora. Já vou.
Ela então sumiu, se encaminhando novamente para sala. Olhei para ele sem saber o que falar, ao mesmo tempo que tudo o que queria dizer era pra que ele não se fosse, assim, sem deixar rastros... Ele pareceu entender.
- Te espero aqui, quero ouvir você tocar. Se você deixar, é claro.

Eu não disse nada, somente sorri e entrei. Fiquei feliz como nunca com aquele seu jeito galanteador. Ao entrar, arrumei o banquinho até que ele ficasse bom o bastante para mim e sentei finalmente a frente do piano. Minha professora perguntou quem era aquele menino ao meu lado.
-Também não sei...
Ela se mostrou animada, com aquela expressão típica de que esperava uma grande novidade da próxima vez que me visse. E completou:
- Não parecia...!
E isso me deixou contente também.

Dei o melhor de mim durante a aula, e tentei tocar a 'Mulatinha' como nunca tinha tocado antes.
Ensaiamos também os chatos exercícios de Czern, que eu tanto odiava. Até eles me pareceram um pouco agradáveis, porque sabia que a aula estava perto do final.
Acabara enfim. Despedi-me da professora também com um beijo, como seu outro aluno fizera, e saí ansiosa. Um abraço veio me aquecer na mesma hora.
-Foi lindo! Como você me fez bem ao tocar durante esse tempo em que estava aqui nesse banco!

Saímos juntos daquele lugar mágico. Estava chovendo forte. Ia pegar meu guarda-chuva, mas ele me puxou antes que conseguisse. Fomos então até o metrô pulando em poças d'água, de mãos dadas, e nos divertindo como nunca havia me divertido antes. Meu cabelo estava encharcado, e minha mãe ia ficar zangada quando visse. Aquilo tudo se transformava em um sentimento maravilhoso.

Ao chegar ali,  me deu um beijo na buchecha, e perguntou:
- Vejo você amanhã?
Aquele sorriso era tudo o que eu precisava ver amanhã, e em todos os outros dias de minha vida.

8 comentários:

  1. Aways creative em Lih, lindo texto, sempre inspiradora.

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  2. O amanhã é tão misterioso, né? Não sabemos o que pode acontecer, se hoje somos dores, amanhã podemos ser alegria, apesar dos desgostos de hoje, amanhã a vida continua.
    Vejo você amanhã, Lih? Quem sabe, o amanhã é um mistério.
    Como me inspirou esse texto, my my my.

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  3. Sempre evoluindo e me surpreendendo, ein? Já pensou em escrever um livro?

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  4. Nossa Lii, lindo! LINDO! Descreve o que todos nós esperamos: um momento de euforia e de pura felicidade. Você foi ótima, como sempre.

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  5. Ah, vocês são uns doces! Fico tão feliz com os comentários que vocês deixam! Obrigada mesmo! ♥

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  6. aaai lidy, mto legal *---* lindo haha

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  7. Um conto de fadas?

    Belo e encantador as pequenas surpresas da vida... Ou os suaves e delicados sonhos da imaginação... (aconteceu de fato ou apenas foi uma idéia que encantou tuas palavras?)...

    Espero que tenha verdadeiramente acontecido...

    Encantador.

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  8. Infelizmente (talvez), foi fruto de uma idéia bonita...

    Muito obrigada por suas palavras! Fico muito feliz ao saber que anda lendo meus textos...!

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